Nos dias em que ele não varria, preguiçoso e tomado pelo calor que se esgueirava pelas frestas da porta, eu sentava-me com algum asco. Mas não conseguia evitar o sorriso quando ele me perguntava se queria algum corte moderno. Ele, que me rapara o cabelo na altura da tropa e a quem continuara a confiar os meus caprichos capilares, não desistia da ideia de me tentar mudar. E eu não desistia da ideia de que ele percebia pouco de modas e que lhe faltava a modernidade dos grandes salões, especialmente os utensílios esterilizados e estilizados, a corte de ajudantes inúteis, os estagiários a quem não confiaria nem uma cabeleira. E com isto pedia-lhe que fizesse o de sempre, que continuasse a fazer com que as mulheres tivessem vontade de perder os seus longos dedos entre a minha melena alinhada e ele voltava a cair em si, orgulhoso de ter um papel nas minhas conquistas.
Ele aproveita-se da minha fome de conversa e da sua sinuosa linha de raciocínio para me pôr a falar e quase a confessar os pormenores mais sórdidos das minhas conquistas. Só que normalmente eu acordo daquele transe a tempo, daquela nuvem de sons que me confunde - a tesoura a passar-me perto das orelhas, abrindo e fechando, as navalhas escanhoando outras orgulhosas figuras masculinas, os jornais que folheavam atrás de mim, a ocasional rouquidão do secador. E por instantes, tenho perante mim a nítida imagem da pessoa que eu sou, não reflectida no espelho à minha frente, mas repetida convencionalmente em todos os homens que se sentam a meu lado, sentindo-se repugnados pelo tufo de cabelos que se demora por ali. Talvez um dia ele nos agradeça a contribuição para as almofadas com que deve decorar o sofá.
3 comentários:
É para mim a maior das honras inaugurar a caixa de comentários deste estabelecimento. Com uma dupla de timoneiros tão talentosa concerteza que só sairão daqui bons frutos. :)
eh pá, parabéns!
E quando se junta o resultado só podia ser brilhante, pois!
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