15 setembro 2009

#2

Silêncio. Eu já não sabia muito bem onde a tinha enterrado. Pensava que mentalmente tinha cartografado a cena toda: o tamanho exacto do buraco, a quantidade de terra que tinha precisado para a fazer desaparecer, os passos entre local que me incriminava e o novo banco de madeira. Eu pensava que sabia tudo de cor, pensava que chegaria ao sítio e, com um sorriso de antecipação, arregaçaria as mangas e começaria a esgravatar a terra. Por isso é que este silêncio todo me oprimia.

Medi os meus passos cuidadosamente - qualquer falha podia denunciar o amadorismo do meu plano. Assegurei-me várias vezes de que não passava por ali ninguém. Era um cuidado desnecessário, este. A noite tinha descido há muito sobre a fonte dos Amores e eu contava com a cumplicidade da serra e com a solidão daquela bica para a recuperar. Ainda não tinha decidido se a destruiria para eliminar todos os resquícios da infelicidade que já me tinha trazido até ali ou se, inspirada pelos assobios calmantes do vento que galgava a serra, a resgataria da terra, trazendo de volta um passado que antes tentara enterrar. Não tinha mais do que as minhas mãos para revolver terra e raízes e lixo acumulado com o impiedoso avançar do tempo: trazer uma pá ou uma enxada seria demasiado incriminatório e espalhafatoso. Por sorte, mantivera as unhas compridas o suficiente para iniciar os trabalhos de resgate. Não era este o desfecho que tinha imaginado há tanto tempo mas sentia-o como uma obrigação, uma necessidade latente de remexer no passado, a única coisa que nunca tinha conseguido enterrar.

O primeiro contacto com a terra demonstrava que algo tinha corrido mal. Já tinha cavado um buraco fundo, de perímetro bastante alargado mas dela nem sinal. Imaginava que a sucessão das estações tivesse tratado de adensar as camadas de terra e que as obras recentes pudessem também contribuído para aumentar a dimensão daquela sepultura. Mas o movimento nervoso das minhas mãos, a terra que nunca parecia terminar e o silêncio imposto pela noite e pela ausência dos eucaliptos diziam-me que algo tinha corrido mal e que talvez fosse já tarde demais. Não queria desistir. Não queria aceitar que a pudesse ter perdido desta maneira ou que alguém a pudesse ter descoberto antes de mim. A velocidade das minhas mãos aumentava à medida que entendia que o esforço que fazia era em vão, que não importava o tamanho do buraco que ia escavar - ela tinha simplesmente desaparecido.

Quando a terra se acumulava já à minha volta em quantidades alarmantes, olhei para trás para me certificar que ainda operava na solidão. Conseguia distinguir lá bem em baixo as luzes da cidades que, tímidas, me lembravam de uma plateia silenciosa e tremeluzente perante o meu desespero. Não conseguia sequer aceitar que o restaurado candeeiro de metal que me alumiava a procura pudesse servir de testemunha do meu falhanço. Sem repor a terra no seu lugar, sem me preocupar em apagar os vestígios da minha procura infrutífera, comecei a descer pela estrada, em direcção à cidade. Completamente ofegante e a cegar com a violenta frustração, acelerei o passo o mais que pude. Depois de perder a caixa onde um dia depositara a minha capacidade de amar, hoje era outra vez dia de jantar solitário frente à televisão.

Sem comentários: