07 janeiro 2010

#10



E de repente já não sabia se ainda chovia lá fora. Já nenhuma marca me trazia de volta à Terra, escolhia deliberadamente ignorar os sobretudos que pingavam e os chapéus de chuva que serviam de bengala e o som irritante da borracha contra o chão que a mulher limpara inutilmente minutos antes. Não sabia de onde saiam as carruagens nem compreendia o cheiro adocicado espalhado por todos os corredores. De repente, só ouvia passos: passos arrastados, passos apressados, passos hesitantes, passos que formavam um exército lento na minha cabeça, que pisavam o chão que ficava agora nos meus ouvidos, sempre o som da borracha a espezinhar o meu espanto. Ainda só tinham passado segundos e já eu reconstituía o movimento em câmara lenta, tentando sabê-lo já de cor, antecipando todas as tardes a recordá-lo: as pernas determinadas, a expressão indecifrável, no cabelo o que pareciam restos de orvalho, as mãos enfiadas nos bolsos.

E de repente os nosso olhares cruzaram-se e não tive direito a mais do que um desconforto mudo, um espanto logo transformado em incómodo menor e foi por uma unha negra que não desfaleci logo ali, aterrando na poça que crescia debaixo dos meus pés há tanto tempo. Agora sabia que chovia. Pelo menos, era isso que me anunciavam os olhos, era contra essa água que engolia muitas vezes repetidas e em seco, era eu quase a sucumbir ao vexame da indiferença. E depois maldisse a minha sorte, amaldiçoei o momento em que deixei de contar os ladrilhos da estação para levantar a cabeça e contemplar o desastre caminhando rapidamente à minha frente. E os passos ribombavam cada vez mais alto e agora começava a ouvir vozes, um estranho dialecto feito apenas da minha vergonha e subia-me um agudo sentido de ridículo às fontes e a boca começava a saber-me mal. Podia chover lá fora, podia cair o maior temporal de que havia memória que nada me havia encharcar mais do que a intempérie que sentia aproximar-se cá dentro: semanas de baixas pressões, dias de cama a escapar a sistemas frontais e as nuvens feitas em chuva e a chuva feita em neve e tudo gelado por dentro e a tua imagem como um fogacho lá fora, trémulo e inacessível.

E de repente ouvia o comboio que partia e eu ainda incapaz de largar aquele pedaço de chão e tu, em alguma carruagem cheia de gente, suspiravas de alívio, talvez. Não hei-de voltar a esta estação.

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