01 outubro 2009

#5

Hoje é dia de usar a flor. Se tivesse sabido mais cedo, tinha escolhido os lugares com cuidado e conseguido bilhetes para a sombra. Ele sabe que hoje é dia de usar a flor porque no dia em que anunciavam a data pelo megafone, entrou-me casa adentro, esbaforido e queimado pelo pico do Estio, e eu levantei-me sem falar para a procurar na gaveta das recordações. Nem sei se ficou contente por imaginar-me em traje de festa mas acho que não - ele já sonhava fazia muito com o dia em que havia de voltar às lides.

Já lavei e escovei o cabelo tantas vezes quantas a minha mãezinha me ensinou. Nos dias de faena, ela engomava a roupa longas horas antes de sair para que a casa pudesse absorver o cheiro bom a roupa lavada e o vapor do próprio ferro de engomar. Depois, pendurava tudo na porta de um armário e parava por momentos, embevecida, a contemplar o resultado da sua dedicação. Não sei do xaile mas, em calhando, o calor terá amansado e os lugares ao Sol estarão cobertos pelas nuvens que já andam a prometer há tantos dias. Mas a flor já a encontrei, misturada com o resto da quinquilharia, esquecida entre calendários velhos, receitas médicas, isqueiros dele e canetas que vou juntando nas campanhas eleitorais. É a única gaveta que destoa - as restantes são perfeitos exemplos da minha personalidade meticulosa, do esmero que herdei da mãezinha. Por sorte, nunca tinha sido ele a fazer limpeza, senão a flor teria acabado certamente misturada com o resto do lixo.

Eu queria sentir o peso do cabelo preso atrás do pescoço, eu queria sentir-me como aquelas miúdas que aprendem sevilhanas e dançam nos saraus e fazem olhinhos em todas as direcções., embriagadas pelo seu próprio poder de atracção. E queria que ele se lembrasse da razão porque partilhávamos uma cama, uma mesa e uma herança, em vez de amar-me apenas em modo automático. Mas eu imaginava o que havia de acontecer logo: ele deixava-me à porta, com valiosas indicações sobre onde encontraria as irmãs dele. Eu atravessaria as portas da praça com pouca segurança e nenhumas capacidades de sedução. Ele ficaria com os homens, retomando as cervejas da tarde e despertaria apenas desse torpor quando sentisse que um forcado me namorava a flor. As irmãs lançariam o habitual olhar de reprovação, enquanto ele era consumido pelas chamas vorazes do ciúme. E eu, balançando entre o orgulho de ainda produzir esse efeito e a vontade de o multiplicar até à exaustão, deixaria a praça meio triunfante entre o restante mulherio, ocupado a dissecar outras desgraças.

Mas ele acabou de entrar e, sem parar na cozinha, sussurrou-me ao ouvido A noite hoje é nossa, Maria Isabel. Três anos é tempo demais - perdi o treino para amar o meu marido. E o que mais me apetecia agora era que ele continuasse a esquecer-se de mim.

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